top of page

Ei tu que queres ser médico!

  • Foto do escritor: mariafedaita
    mariafedaita
  • 24 de ago. de 2017
  • 5 min de leitura

Antes de mais, se queres ser médico, muitos parabéns. Se queres realmente ser médico, se TU ambicionas ser médico (e não a tua mãe ou o teu pai que também é médico), dou-te os parabéns: sinceros e honestos. Poderás estar prestes a chegar a uma das profissões mais bonitas, a meu ver, e recompensadoras.


Se pensaste em ser médico, ou simplesmente sempre puseste essa hipótese de parte, os meus parabéns também. Certamente que a tua vocação estaria direcionada para outros horizontes, ou se não estava, certamente que te tornaste em alguém exemplarmente brilhante numa outra área, ou conseguiste passar ao lado de um mundo aterradoramente assustador. Parabéns.




Se queres muito ser médico, há três palavras que terás que ter SEMPRE, diariamente, escarrapachado na testa, tipo post-it (sim, porque se queres mesmo ser médico também vais aprender a gastar desordenadamente milhares de post-its): HUMILDADE, PERSISTÊNCIA e VIDA.


Passemos à frente a fase do entrar na faculdade de medicina, porque aí, já se sabe, vais ter que marrar muitas outras palavras, vais ter que decorar, mesmo sem perceber a utilidade, fórmulas físicas, datas de 1900 e troca o passo, rios de meio mundo, a idade das rochas ... nada mais me ocorre a não ser: Boa Sorte!


Depois entras na faculdade. São 6 anos, meu caro. No primeiro vais levar horas a fugir dos doutores mais velhos, alguns que irás reconhecer mais tarde como fatídicos frustrados e mal resolvidos e pensarás: "Onde é que eu estava com a cabeça quando me pus de quatro em frente àquele ser"! Vais comprar dezenas de sebentas e fotocópias porque os mais velhos disseram, embora nunca acabes por ler tudo, vais engolir em seco no teatro anatómico quando te sacarem do tanque braços e pernas, vais passar algum tempo a decorar umas músicas que acabam sempre em badalhoquice e vais dar com a cabeça na parede na época de exames quando vires que devias era ter decorado a origem do músculo elevador da omoplata ou as ramificações da artéria mesentérica superior.


No segundo e terceiro anos vais-te sentir o rei da medicina. Lá em casa já te vão pedir para medires as tensões, compras uma bata para enganar e vais esfalfado escolher a cor mais in do estetoscópio. Vais continuar a comprar os apontamentos todos e vais continuar a bater com a cabeça na época de exames. E apenas uma das três palavras que em cima referi fará mais sentido nestes três primeiros anos: não te adianta grande humildade com anatomia porque poderás reprovar com grande probabilidade; por muito que sejas persistente a marrar, vai-te sempre passar a ligação do carbono 12 ou o nervo mais ínfimo do períneo mas, embora isto seja estupidamente difícil, vai haver sempre uma vida por trás, amigos, festas, família ... isso deve ser o teu foco!


O quarto e quinto ano valem todo o esforço. Aqui começas o teu contacto com o doente - aquilo em que tu achavas que ias ser particularmente espetacular porque até gostas de falar com a senhora da mercearia ou porque não te cansas de ouvir a tia que fala das 20 mil doenças. Enganas-te!! Vais encontrar as histórias clínicas mas miranbulescas e vais achar que não nasceste pra isto quando te desafiarem a sacar alguma informação ao velhinho acamado, com demência e que te fixa com o olhar, só! Ou quando te mandarem auscultar para ouvir o sopro no coração da gentil senhora e dirás "Sim, sim, estou a ouvir!", mas na verdade estás a pensar "Mas que caraças é isto? Pum pum, prum pá, prum pá". Ou quando estiveres em moche quase em cima do doente na consulta, tu e mais 8 marmanjos, para poder fazer pela primeira vez um toque retal. Inesquecível!


No último ano, bem ... certamente que ouviste falar no Harrison. Este será o auge da tua carreira médica ou estudante. Vais aprender que existem milhares de cores diferentes de canetas e marcadores, vais preencher post-its um pouco desordenadamente porque muitas vezes nem sabes o que lá está, vais correr atrás de senhores professores doutores, que te vão ignorar, apenas para sacar uma assinatura para completar a caderneta de gestos clínicos, vais-te esfalfar a tentar escrever umas coisas a que chamarás tese e verificar que aquilo que achavas que ias descrever como único na medicina, já foi feito em 1937 e já se está farto de ver. Mas vale o esforço.

E aqui, na reta final, fica o meu conselho: Persistência (algo há-de entrar, nem que seja por osmose); Humildade (não adianta meter inveja aos outros a dizer que já vais na 8ª volta do livro) e Vida (continua a haver uma vida lá fora e isso sim vale a pena).


Passado esta tormenta, vais-te sentir o maior. Sacaste um 70 no Harrison, mas vais cair de queixo quando vires que, aquela nota porque tanto suaste, apenas te dá um ínfimo e mísero 650º lugar na tabela. Check! Vais esconder de todos a especialidade que vais escolher, não vá ali o vizinho ter ideias e escolhê-la primeiro e vais dar pulinhos de alegria quando te entregarem a folha a dizer que vais ser qualquer coisa no hospital X. Não terminou meu caro.


Começa o internato. Aqui ainda vou um pouco no início e, portanto, não poderei deixar já aqui o final descrito - mas prometo fazê-lo. Entras num hospital, num novo serviço, vais entuasiasmadíssimo 2 meses antes apresentar-te ... para nada! Ninguém vai saber quem és, de onde vens. Vais chegar todos os dias nervoso, poderás até ser pesadelos à noite em casa, mas isso passa. Com o passar dos meses vais-te sentir mais à vontade, ou não. Mas, felizmente, vais sentir que começas a ser médico. E aqui, mais do que nunca, as 3 palavras mágicas que trazias na testa farão ainda mais sentido: Vais ter que ter humildade suficiente para assumir que não sabes, que erraste, que tens dúvidas ou que não fazes a mínima ideia do que estão para ali a falar; vais ter que ser persistente, pois vão chegar quilos de nova informação, novas pessoas, novas personalidades e feitios; e, por amor de deus, não desleixes nunca a vida fora do hospital - é o melhor que temos.



Durante o internato vais aprender também a engolir enormessssss sapos. Vais muitas vezes ver como não se deve fazer, mas aceitar que assim é; vais levar carolos e espécies de raspanetes em frente a meio mundo sobre a tua azelhice; vais encarar doentes nas consultas que já estavam a reclamar na sala de espera e que chegam com um humor de bradar aos ceús, mas que conseguem colmatar com um "Deus ma livre! Não quero ser visto por um estagiário". Vais seguir atenciosamente velhinhas simpáticas, mas no final os bombons acabam com o especialista - que, com sorte, partilhará um contigo. Vais aprender que, mesmo quando deixam o numero de telemóvel e dizem "se for muito urgente, liga", nunca nada vai ser assim tão urgente e vais-te desenrascar sozinho. Vais ser lançado aos lobos enfurecidos nas urgências, sozinho, abandonado, mas um mês depois estás a destrocar gasimetrias, pedidos de exames e frascos de xixi. Com sorte, se for o caso, vão-te deixar dar um pontinho quando a cirurgia já tiver acabado. Vais aprender a dormir fora de casa, onde calhar, em macas ou em beliches barulhentos. Vais esquecer a história de desmaquilhar antes de dormir, ou tirar as lentes, ou qualquer outro ritual de sono de beleza. Vais acordar sobressaltado com o telefone e aparecer tipo zombie.


É chato, eu sei! Mas, se realmente mantiveres o post it com a HUMILDADE, PERSISTÊNCIA e VIDA, verás que vai renascer, mais cedo ou mais tarde, a tal vocação que achaste um dia que tinhas. Vais criar uma família dentro do hospital, com colegas, especialistas, enfermeiros, auxiliares; vais partilhar momentos únicos e inesquecíveis; vais ajudar a trazer novas vidas ao mundo, mas vais ver muitas partir; vais gostar de ir trabalhar, vais sentir que um dia ajudaste mesmo alguém. Mas essencialmente, vais sentir que cresceste, porque houve alguém no meio disto tudo que te ajudou a crescer, que te deu a mão, que te reergueu, que te aconselhou ... tudo porque tiveste atenção à palavra mágica VIDA. E é tão boa lá fora!



Comments


MARIA FEDAITA

SAÚDE E BEM ESTAR

© 2016 por Maria FEDAITA. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page